Crianças e adolescentes que se cortam de propósito: o que está acontecendo?

Crianças e adolescentes que se cortam de propósito: o que está acontecendo?

Atualmente, venho recebendo um número crescente de queixas de crianças e adolescentes apresentando comportamento autolesivo, ou automutilação.

Em geral, são cortes lineares e paralelos nos pulsos, antebraços e nas pernas também.

Felizmente, a grande maioria são cortes superficiais, sem muitos danos ou consequências graves. Porém, isso não é motivo para ignorar ou simplesmente interpretar como mero comportamento exibicionista, para chamar a atenção, ou para pertencer a algum grupinho, simplesmente. Tampouco esse tipo de comportamento pode ser interpretado como simples manipulação ou chantagem emocional para que os pais dêem tudo que o adolescente quer.

Por outro lado, não quer dizer, necessariamente, que a criança ou adolescente vai cometer suicídio em um prazo curto, ou que já esteja em um quadro grave de depressão, ou de qualquer outro transtorno.

É preciso avaliar com cautela, coletar o máximo de informações possíveis, e principalmente fortalecer o diálogo, cuidando para que a criança ou adolescente se sinta segura e confortável, o suficiente para poder se expressar, falar sobre o que está sentindo, bem como sobre as dificuldades pelas quais está passando, e que não está encontrando outra forma de lidar com a situação, que não seja a automutilação.

Influência da mídia e do conteúdo

Embora o assunto seja polêmico, não há comprovação científica de que animes, músicas, jogos eletrônicos, entre outros conteúdos, estejam diretamente relacionados como causas de transtornos, ou episódios de automutilação, suicídio, ou até mesmo dos assassinatos em escolas.

A julgar pelos conteúdos mais consumidos na faixa etária entre 9 e 14 anos, a maior parte animes (desenhos animados japoneses), como “Naruto, One Piece, Dragon Ball, Black Clover, Demon Slayer, etc”, onde os personagens tem poderes mágicos, e utilizam-se de armas cortantes e perfurantes (espadas, adagas, estrelas ninja, lanças, entre outros), pode-se dizer que a atual geração de crianças e adolescentes, têm uma maior familiaridade, com o uso agressivo de objetos cortantes. Mas daí a concluir que causem a automutilação ou qualquer outra situação, já é um exagero.

Se os animes, jogos, filmes e séries são repletos de armas cortantes e violência, não significa que todas as crianças que consomem esses conteúdos, estão fadadas  à automutilação e/ou ao suicídio. Imagine se todas as gerações que consumiram filmes de violência, terror, desenhos com espadas e armas, por exemplo, fossem seguir os exemplos de seus heróis. Entretanto, não podemos descartar a influência desses conteúdos, tanto na “normalização” do contato com armas brancas e objetos cortantes, como também, na interpretação enviesada por parte de adolescentes que já apresentam quadro depressivo, ideação auto mutiladora e/ou suicida. E é aí que reside nosso ponto de atenção. 

Existe um estudo correlacionando o aumento de mortes por suicídio nos Estados Unidos, no período pré e durante o lançamento da primeira temporada da série “13 Reasons Why”, que trata do suicídio de uma adolescente, e das várias cartas de despedida personalizadas em fita k7, que ela gravou para cada uma das pessoas que, de alguma forma, ela via como responsáveis por proporcionarem-na momentos de sofrimento intenso, os quais ela não suportou, e por isso decidiu por fim à sua dor, cortando os pulsos.

Entretanto, a Empresa de Streaming Netflix ressalta que um outro estudo, relativo à segunda temporada da série, evidencia justamente o contrário, ou seja, uma queda nos números de suicídio, após o lançamento dessa temporada. A empresa ainda alega que, segundo um outro estudo da Universidade da Pensilvânia, as pessoas que assistiram a segunda temporada por inteiro, estavam menos propensas a cometer suicídio.

Quer dizer que devemos proibir nossos filhos de assistir animes, jogar games violentos e ver séries?

De forma alguma. O ideal é exercer o controle de conteúdos, segundo a classificação indicativa de cada um deles, de acordo com a faixa etária, assim como controlar o tipo de conteúdo acessível no computador e no celular.

Se você mantiver sua criança assistindo apenas os inúmeros conteúdos destinados à sua idade, certamente já vai ser de muita valia.

Mas os amigos e a turma do “Discord” assistem.

Esse ponto é crucial. Muitas vezes, os jovens que permanecem mais tempo online, são os que não têm limites em casa, e portanto, assistem o que querem, quando querem, sem o menor controle. Eles se destacam como os mais "descolados'', falando de assuntos que os demais não têm acesso, atiçando a curiosidade, gerando status no grupo para quem conseguir assistir tal conteúdo.

O Discord é um aplicativo de conversa por voz e texto, inicialmente sobre jogos, onde os adolescentes (idade mínima oficial para entrar de 13 anos) montam e entram em grupos, para terem a imersão nos jogos online, falando sobre como jogam, enquanto jogam. Frequentemente surgem assuntos fora do tema “jogo”, e montam-se novos grupos em que predominam conversas sobre conteúdo impróprio, inclusive com acesso a imagens e vídeos.

A pressão dos grupos também acontece na escola, e em menor frequência, em outros contextos de atividade coletiva (esportes, cursos, condomínio, bairro, etc).

Cabe aos responsáveis, manter o controle sobre o conteúdo acessado, de forma a assegurar a adequação etária, mas também manter um canal de comunicação constante e aberto, para ouvir, apoiar e orientar os filhos, inclusive apontando as consequências do consumo de conteúdo impróprio. 

O Grupo dos que se cortam

Sim, existem grupos nas mídias sociais, compostos por jovens com dificuldades em lidar com seus problemas cotidianos, que vão, por exemplo, desde conflitos com pais e familiares, passando por separação dos responsáveis, identidade de gênero e orientação sexual, homofobia, preconceito, bullying, assim como sinais claros de depressão, transtornos, automutilação e ideação suicida.

Além da internet, esses grupos também aparecem na escola e nas outras atividades sociais.

A grande problemática desses grupos, é a falta de orientação adequada, que acaba por vezes estimulando uma autoimagem depreciativa e carregada de culpa, uma perspectiva pessimista sobre o próprio futuro, e uma visão do ‘mundo fora da bolha’ (o grupo, e os amigos), como um lugar predominantemente hostil e destrutivo. 

O resultado final, a longo prazo, pode ser a intensificação dos sintomas depressivos, aumento das crises de ansiedade, e culminar em automutilação e tentativas de suicídio.

Aqui também, isso não quer dizer que os jovens não possam ter direito de se agrupar e compartilhar, o que seria antinatural, inclusive, pois é o esperado no desenvolvimento social do adolescente.

A questão, novamente, é o diálogo. Quando o adolescente se sente seguro e livre para se aconselhar com seus cuidadores, estes serão sua referência do que é bom ou ruim para ele, do que é certo ou errado, do que é saudável ou prejudicial, independente do que disse o fulano lá do grupo. O jovem, inclusive, percebe que o tal fulano pode estar precisando de ajuda e quando é melhor se afastar de determinado grupo.

Grupos saudáveis fazem a diferença

A importância dos grupos na adolescência é tão grande quanto suas notas. Nesta fase, é cultural que eles se aproximem de outros, se encantem com as coisas em comum, buscando uma identidade, diferenciando-se dos pais.

Os grupos dão a eles o lugar de pertencimento, de acolhimento, de proteção, de apoio.

A questão é discernir, quais grupos vão potencializar o que eles têm de melhor, ou quais grupos vão trazer o afloramento de uma autoimagem distorcida, uma visão de mundo hostil, e uma perspectiva de futuro na solidão, no fracasso, na vergonha, e na sensação de insuficiência.

Daí a necessidade de os cuidadores estarem atentos aos amigos e grupos, desde o ingresso na escola, nos clubes e atividades sociais. Conhecendo o histórico, as relações familiares, os valores e a conduta das turmas, fica muito mais fácil aconselhar e apoiar os filhos, nas decisões sobre com quem andar, e como agir em momentos desafiadores.

 Quando a coisa fica grave

Em determinados períodos, alguns jovens passam a apresentar comportamentos bastante atípicos, incluindo isolamento acima do usual, diminuição intensa na frequência e duração de conversas, pontos de vista demasiado críticos e pessimistas, uso de camisas de manga longa, blusas, luvas e calças, mesmo em período de muito calor, explosões de raiva diante de frustrações típicas do cotidiano, idas às pressas do quarto ao banheiro, entre outros. Geralmente, um ou outro desses comportamentos, de forma isolada, não implica em algo grave, porém, quando um conjunto desses sinais é observado, é importante ficar atento e revisar quando começou, buscar identificar algum evento familiar, escolar, no cotidiano relativamente recente que possa ter desencadeado esse repertório atípico. Tão importante quanto, é buscar o diálogo, se mostrar à disposição para conversar, sem “forçar a barra”, sem diminuir, comparar ou menosprezar o sofrimento e a queixa apresentados.

Caso se perceba que, ainda que haja diálogo, não está surtindo o efeito necessário, ou se perceba que de fato há a automutilação, é importante procurar serviço profissional (Psicólogo e/ou Psiquiatra) para tratar o caso da forma mais apropriada.

Há uma variedade de transtornos afetivos e de personalidade em que ocorre a automutilação, assim como a ideação suicida e as tentativas de suicídio. Para esses transtornos, existe tratamento adequado, profissionais capacitados e medicamentos específicos.

Nesses casos, a oração e a meditação podem ajudar, mas o foco principal é o tratamento psicoterápico e psiquiátrico, para garantir o controle do quadro e mitigar a autoagressão.

Com o tratamento adequado, tanto psiquiátrico (que pode passar pelo uso de medicamentos em casos de crises e/ou risco de suicídio) como psicológico (sessões semanais de terapia), a tendência é o resgate do bem estar e da autonomia do adolescente em relação à situações cotidianas.

Reforçando: o diálogo e a participação dos cuidadores na vida do adolescente, de forma equilibrada e  consensual, são as maiores ferramentas, não apenas para casos de automutilação, mas para quaisquer situações desafiadoras pelas quais eles venham a passar. 

Para tanto, é preciso um olhar atento, mas também saber suspender valores e expectativas, pois são pontos cruciais para que o adolescente se sinta de fato confortável e seguro, para se abrir sobre o que sente e o que pensa, sobre aquilo que acontece com ele.

Crianças e adolescentes que se cortam de propósito: o que está acontecendo? - Por Darci Montanari

Lembre-se: em caso de sofrimento intenso, procure um profissional.

Psicólogo Darci Montanari

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